O estupro de mulheres na Igreja Católica
(Fonte: Revista Época)
(Estudo sobre o qual se baseou a presente entrevista) |
A socióloga da religião Regina Soares Jurkewicz é católica. Mas do tipo que provoca calafrios na ala conservadora. Ela passou os últimos anos dedicando-se a investigar as estratégias usadas pela cúpula da Igreja para silenciar vítimas, proteger agressores e encobrir crimes sexuais cometidos por sacerdotes. A pesquisa, financiada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), é parte de sua tese de doutorado em Ciências da Religião desenvolvida na PUC de São Paulo. Ao se debruçar sobre 21 casos denunciados pela imprensa e esmiuçar dois deles em profundidade, Regina concluiu que a Igreja Católica no Brasil se coloca acima das leis do Estado ao tentar - e em geral conseguir - manter os casos de violência sexual dentro de suas sólidas paredes. A socióloga recebeu ÉPOCA com exclusividade para a seguinte entrevista.
ÉPOCA - A senhora escolheu investigar a violência sexual de padres contra mulheres em vez de concentrar a pesquisa na pedofilia, que é o tema mais em evidência. Acha mais difícil identificar e punir a violência contra mulheres?
Regina Soares Jurkewicz - É muito mais fácil, no senso comum, aceitar a criança como vítima. Mas quando se fala que uma mulher sofreu um abuso ou foi estuprada, a primeira idéia é de que ela seduziu o agressor. Quando as mulheres denunciam, acredita-se menos nelas, pior ainda se forem adultas. E muito pior se o agressor for um padre, um homem envolto em aura de santidade. De vítima ela vira culpada.
ÉPOCA - No início do mês, a diocese de Covington, nos Estados Unidos, criou um fundo de US$ 120 milhões para compensar cem vítimas. Isso já aconteceu antes com outras dioceses americanas. Há mais padres abusadores lá do que aqui ou trata-se de uma diferença de política da Igreja?
Regina - Tenho certeza de que aqui há tantos abusadores quanto lá. Mas lá a consciência de cidadania é muito mais avançada, as vítimas criam redes de sobreviventes. Desde que o escândalo da batina estourou nos EUA, em 2002, aumentaram as denúncias em outros países, inclusive no Brasil. Mas lá as assimetrias são muito menores, existe muito menos diferença social, econômica e cultural entre os padres e as vítimas. Aqui as mulheres violentadas são empregadas domésticas, secretárias da paróquia ou apenas meninas pobres da comunidade. Expressam-se com dificuldade, não têm nenhuma consciência de direitos, estão desprotegidas. Tanto que nunca houve aqui um caso de pedido de indenização de uma mulher violentada ou que tenha sofrido abuso por um padre. Em nenhum dos processos que pesquisamos houve condenação, embora alguns ainda estejam em andamento. No Brasil, a maioria dos casos permanece encoberta, protegida pelo silêncio imposto pela cúpula católica. Nos dois anos e meio em que pesquisamos, em cada lugar aonde íamos pessoas ligadas às pastorais, freiras etc. sempre nos contavam algum caso que nunca se tornara público. Mas ninguém queria fazer a denúncia.
ÉPOCA - A senhora diz que a Igreja Católica no Brasil usa estratégias para encobrir crimes e criminosos, colocando-se acima do Estado. Como é isso?
Regina - O padre que abusa tem uma proteção institucional que os outros homens não têm.Homens não-padres estão mais sujeitos às leis civis. O padre também está, porque antes de ser padre é um cidadão. Mas o que acontece na prática é que a Igreja fez a escolha do silêncio. E, assim, acoberta fortemente o sacerdote. O bispo ou superior se preocupam em conversar com ele, mas é uma conversa no sentido de compreendê-lo, de saber se está disposto a pedir perdão a Deus e se reconciliar. Dificilmente ele será afastado do sacerdócio. Todos os esforços da cúpula são para que o caso não saia das paredes da instituição. Uma das vítimas com quem conversei contou o crime ao superior do sacerdote que a violentou. O superior lhe disse que era sabido que o padre em questão tinha problemas com as mulheres, mas que na Igreja há uma orientação para que os problemas sejam resolvidos internamente. Em suas palavras, ''irmão tem de acolher irmão''. Então era preciso evitar a denúncia e o escândalo. A pesquisa mostrou que esse é o procedimento-padrão. O escândalo é o grande medo. A Igreja quer ter o privilégio de não se submeter às leis do Estado. E consegue.
ÉPOCA - Nessa lógica, os superiores seriam cúmplices de um crime e poderiam ser processados...
Regina - Num dos casos o bispo chegou a ser processado por uma tentativa de subornar as vítimas. Teria oferecido dinheiro para que retirassem a queixa. Mas foi assessorado por um bom advogado e o caso foi encerrado. Esse bispo foi promovido e hoje tem um cargo importante na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Legalmente, não há problema, já que ele foi absolvido pela Justiça.Encontramos outros casos de promoção. Faz parte da estratégia de proteção seguida pela Igreja quando o caso se torna público. A cúpula homenageia o agressor, ele assume um cargo que o qualifica mais e, portanto, protege-o mais ainda. Em outro caso, o agressor foi promovido a reitor de um seminário. A promoção é um reforço, um prestígio social que torna o abusador ainda mais imune à acusação.
ÉPOCA - A senhora pesquisou 21 casos. O que as vítimas têm em comum?
Regina - Quase todas são mulheres e adolescentes pobres. Sempre próximas aos agressores, ou porque eram membros da comunidade, ou porque trabalhavam na paróquia. Nesse sentido, é uma escolha pela facilidade. As mulheres pobres são mais vulneráveis porque precisam da cesta básica, recebem o apoio da paróquia para arrumar a casa, se a cidade é pequena a igreja é o espaço de encontro. Que sacerdote vai mexer com uma mulher ou uma adolescente que tenham um padrão social melhor e quem as proteja? Num dos casos, por exemplo, as vítimas contaram que o padre se sentia mais protegido porque elas ainda não tinham menstruado e, portanto, não poderiam engravidar. Quem denunciou foi a mãe de uma delas, aí apareceram outras. Ao final, havia 21 vítimas, mas com a pressão poucas sustentaram a acusação.
ÉPOCA - Neste caso específico, o que aconteceu?
Regina - As vítimas foram desqualificadas e destruídas, tiveram de se mudar da cidade porque ficaram marcadas e não conseguiam trabalho. Essa é outra estratégia da Igreja: desqualificar as vítimas e valorizar o agressor, lembrar dos bons serviços que ele sempre prestou àquela comunidade, de como sempre foi caridoso e, portanto, incapaz de ter cometido tal delito. As meninas saíam à rua e eram chamadas de prostitutas. Uma delas foi literalmente apedrejada. O padre foi preso por pouco tempo, mas o advogado alegou que tinha a saúde debilitada e conseguiu liberá-lo. Esse tratamento tão diferenciado, que desacredita a vítima e dificulta a apuração, é uma forma de fazer com que o caso não siga adiante. Embora não seja essa a intenção da Igreja, é uma forma também de colaborar para que outras mulheres sejam violentadas.
ÉPOCA - Simbolicamente, é diferente ser violentada por um padre?
Regina - Elas demoram a identificar o abuso. Se for estupro, claro, é diferente. Uma delas conta que o padre a abraçava, passava a mão no seu corpo e ela pensava: ''Mas não é possível, é o padre''. E quando contou ao pai, ele disse: ''Imagina, é o padre, ele não está querendo nada, você estáfantasiando coisas''. Essa idéia de que o padre é imune ao desejo é muito forte. A Igreja faz a negação da sexualidade. E o padre tem a respeitabilidade pelo lugar de autoridade que ocupa. A própria comunidade tem dificuldade em aceitar o fato. Em geral, prefere acreditar que as vítimas estão inventando. Em resumo: se já é difícil denunciar qualquer homem por violência sexual, imagina um que conta com a proteção divina.
"Quando um padre se casa com uma mulher, a demissão é a primeira medida. Quando comete um crime sexual, é a última. É muito mais forte a punição por romper o celibato do que por estuprar uma mulher" |
ÉPOCA - A senhora diz que outro mecanismo utilizado seria a transferência do padre para comunidades mais pobres e distantes. Como é isso?
Regina - Se a permanência na comunidade se torna impossível por causa da denúncia, em geral os padres acusados são transferidos para paróquias mais vulneráveis, mais pobres e distantes. E a comunidade não é avisada sobre o motivo da transferência. Nos Estados Unidos, por exemplo, há uma norma diocesana que torna obrigatória a informação do motivo da transferência. No Brasil, não. Mantém-se o segredo. Isso favorece a reincidência.
ÉPOCA - Existiria, segundo sua tese, um decálogo seguido pela Igreja nesses casos. Quais seriam os dez mandamentos para proteger padres abusadores?
Regina - Esse decálogo foi identificado por um pesquisador espanhol, Pepe Rodríguez. O que nós fizemos foi observar se ele era seguido nos casos brasileiros. Comprovamos que sim. Trata-se de uma série de procedimentos que mostram que a Igreja Católica no Brasil tem, sim, uma política de enfrentamento da questão, o que não tem é uma política para resolver o problema. Receia enfrentar o conflito, então prefere ocultá-lo. E, para isso, arrebenta o lado mais fraco.
ÉPOCA - E quais são esses dez mandamentos?
Regina - O primeiro é a averiguação discreta do que ocorreu, de modo informal. O segundo, se o superior reconhece a situação de violência sexual, é chamar o agressor e admoestá-lo. Também vai conversar com as vítimas dizendo que o agressor está arrependido e não repetirá o erro. Vai pedir que elas não dêem queixa para não prejudicar a instituição. O terceiro é o encobrimento dos fatos por meio de suborno ou transferência do sacerdote. Se o caso torna-se público, o quarto mandamento determina que a Igreja adote um expediente canônico para se defender de acusações de cumplicidade. Uma maneira de dizer que estão cuidando do caso internamente. Ou segue o quinto mandamento e nega publicamente que ocorreu o crime. No sexto, faz a defesa pública do agressor, ressaltando seus bons serviços prestados e seus méritos pessoais. No sétimo faz a desqualificação pública das vítimas. No oitavo, atribui a denúncia a uma campanha orquestrada por supostos inimigos da Igreja. No nono, oferece uma compensação financeira à vítima para que retire a queixa. Finalmente, no décimo, quando a culpa está comprovada, a Igreja fica ao lado do agressor e faz todos os esforços para que o crime seja esquecido. Encontramos todos esses elementos nos casos, mas misturados. São normatizantes.
ÉPOCA - A senhora diz que o Código de Direito Canônico é mais duro com os padres que rompem publicamente o celibato que com os abusadores...
Regina - É verdade. Se um padre rompe o celibato e se casa, o código manda demiti-lo imediatamente. Se ele cometeu delito sexual, a pena é muito mais amena. O Artigo no 1.395, por exemplo, diz: ''O clérigo que tenha cometido delito contra o sexto mandamento (''Não cometerás adultério''), se foi praticado com violência ou ameaça ou publicamente com menor abaixo de 16 anos, deve ser punido com justas penas, não excluída a demissão do estado clerical''. Ou seja, quando o padre se casa, a demissão é a primeira medida. Quando comete um crime sexual, é a última. É mais forte a punição por romper o celibato que por estuprar uma mulher.
ÉPOCA - A senhora afirma que, embora o celibato seja uma regra cara à Igreja, não é mais a prática da maioria. Os celibatários estão em extinção?
Regina - Acredito que existem homens na Igreja que encontram um valor no celibato e que vivem isso. Conheço alguns deles. Mas são minoria. Quando conversamos com seminaristas, isso se torna muito claro. Eles dizem que essa é uma regra da Igreja e que estão conscientes de quenão vão cumpri-la. Todo mundo sabe, dentro e fora da Igreja, que o celibato não é cumprido. O que a instituição não tolera é que o celibato seja quebrado publicamente. Enquanto for clandestino, tudo bem. É mais uma situação difícil: é como se tudo pudesse ser vivido, mas nada pudesse ser falado. A palavra oficial da Igreja é de não abrir mão do celibato. Mas a realidade mostra que isso não é uma prática dos nossos tempos. São muito poucos os padres realmente celibatários.
ÉPOCA - Seria semelhante ao uso de contraceptivos, em que o papa proíbe, mas os fiéis usam sem culpa?
Regina - Exatamente. No caso do celibato, de novo as mulheres são as penalizadas. Se namoram um padre, numa relação consentida, quem fica com o ônus da relação clandestina é a mulher. O padre continua tendo um lugar na comunidade, segurança econômica, afetiva e identidade social. O que se dizia antigamente? "Mulher do padre, mula-sem-cabeça"... É outro problema que a Igreja precisa enfrentar.
ÉPOCA - Vale a pena denunciar a violência nesse contexto de impunidade?
Regina - É o único caminho, mas por enquanto só temos mártires. Até hoje as mulheres que denunciaram padres passaram por uma segunda violência, que é a social, ao ser desacreditadas. Mas essas mulheres não são menos parte da Igreja que os padres que as violentaram. Fizemos a pesquisa para pressionar a instituição a reconhecer o problema não como um caso isolado, mas estrutural. A sociedade não pode ficar esperando que a Igreja mude enquanto mulheres são violentadas por sacerdotes - impunemente.
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